domingo, 30 de setembro de 2007

A confissão
(por Elano Ribeiro)

Era meio dia em ponto quando eu entrei no cinema lá do centro da cidade, aquele com a frente pintada de verde, o único que restou, porque os outros o senhor sabe né? Viraram supermercados ou igrejas. Eu precisava de um lugar onde eu pudesse ficar sozinho, onde não houvesse a mínima chance de me encontrar com qualquer pessoa conhecida. Eu tinha que botar a cabeça em ordem, decidir o que fazer depois daquela noite de discussão e lágrimas. A sala estava vazia e o filme eu nem sei dizer pro senhor qual era. Durante todo o tempo que fiquei lá dentro, estive de olhos fechados, encolhido na cadeira como uma criança que acabou de fazer alguma coisa muito errada. E o pior doutor é que eu vinha fazendo mesmo né? Mas eu juro pro senhor que eu lutei com todas as minhas forças pra me livrar da tentação, até promessa eu fiz doutor. Mas doutor, o senhor sabe como é né? A carne é fraca, e aquela vadia sabia me provocar direitinho. Aposto com o senhor que ela deve ter feito algum trabalho. Desculpa, eu sei que o senhor não vai apostar nada né? O fato doutor, é que eu há muito tempo vinha com vontade de juntar minhas coisas e ir embora, só não fiz isso por causa das crianças. O senhor tem filhos doutor? Ah, dois meninos? Então o senhor sabe que não dá pra deixar os filhos assim de uma hora pra outra né? Eu também já havia pensado em contar toda a verdade pra Clarice, mas nunca tive coragem. Tinha medo que ela me deixasse e levasse as crianças com ela. Ela não merecia ter esse fim, a pobrezinha. Eu é que sou o canalha da história e, no entanto, estou aqui, e ela, a doce Clarice, não mais. Sabe doutor, Clarice era um exemplo de mulher, de mãe, de dona de casa. Mulher prendada, dessas que a gente não vê mais hoje em dia. Clarice fazia questão de acordar antes de mim e preparar meu café da manhã. Fazia ovos mexidos como ninguém. Botava as crianças pra escola e só saía de casa sozinha pra ir à feira. Quando eu chegava em casa à noite, depois do trabalho, lá estava ela com uma bacia de água quente, e humildemente, como se eu fosse o seu senhor, lavava e massageava meus pés. Desculpe-me pelas lágrimas doutor, mas o senhor entende né? Sabe doutor, eu acho que se fosse com outra vagabunda qualquer, Clarice até me perdoaria, mas com a Ritinha, nossa afilhada, foi muita humilhação pra ela doutor. Quando nós batizamos a Ritinha, ela só tinha dois anos de idade, era uma criança inocente, bem diferente dessa vadia de hoje, que destruiu minha vida e me tirou Clarice pra todo o sempre. Nessa época do batizado, Clarice e eu estávamos casados há pouco tempo, éramos jovens bonitos e apaixonados. Mas o tempo passou doutor, nossa pele já não tinha o mesmo brilho, o corpo de Clarice já não era aquela formosura toda de outros tempos. Mas eu ainda amava a minha Clarice. Ah doutor, e como eu amava aquela mulher. O senhor acredita que eu a amava né? Só que aquela criança inocente que um dia nós batizamos, cresceu e se tornou uma perdição de tão bonita, pele rosada e lisinha, cochas grossas, seios pontudos. Ah, meu Deus, porque me deixou cair nas artimanhas do maligno. Aquela sem vergonha começou a freqüentar nossa casa, e não sei por que diabos ela foi se aproximar justo de mim, um homem casado, padrinho dela, e ainda por cima vinte anos mais velho. Ritinha me provocava, aparecia sempre com umas blusinhas que deixavam o umbigo de fora e com saias muito acima dos joelhos. Eu resisti por muito tempo doutor, mas teve um dia que eu não agüentei. E foi nesse maldito dia que minha vida começou a acabar. Durante três anos eu traí Clarice com aquela vadia. Perdão doutor, estou xingando muito né? Vou tentar me controlar. Eu imaginava que ninguém soubesse dos nossos encontros furtivos, mas ontem, antes de eu chegar do trabalho, alguma desalmada colocou uma carta anônima por debaixo da porta. Digo desalmada, porque isso só pode ser coisa de mulher né? Ah doutor, nossa noite foi um inferno. Clarice me chamava dos piores nomes, e a única coisa que eu podia fazer era pedir perdão. Eu jurei pra ela que nunca mais iria olhar pra cara da Ritinha. Mas já era tarde demais pra consertar as coisas doutor, Clarice estava se sentindo a última das mulheres. As crianças não paravam de chorar, por isso eu achei melhor passar a noite fora. Quando eu saí do cinema hoje à tarde, pensei que as coisas lá em casa já pudessem estar um pouco mais calmas. Mas que nada doutor, pra Clarice, o que eu fiz não tinha perdão, não tinha mais volta. Eu a encontrei sozinha em casa, sentada na beirada da cama. Ela já tinha tudo planejado doutor, tanto que ligou pra irmã e pediu que ela fosse lá em casa buscar as crianças. Clarice estava com a mesma roupa da noite anterior, e pelo vermelho dos seus olhos, havia chorado convulsivamente. Antes que eu dissesse qualquer coisa, Clarice foi até a gaveta da cozinha, pegou a maior faca que tinha lá e partiu na minha direção. Eu fiquei parado doutor, esperando e torcendo pra que ela me apunhalasse o peito, pra que ela rasgasse minha carne de pecador, de traidor. Mas quando Clarice se jogou em cima de mim, ela já havia virado a lâmina da faca para si. Meu corpo serviu de parede para que todo aquele aço entrasse no corpo da minha mulher. Clarice deu um último suspiro, e com olhos arregalados de tanto pavor, tombou sua cabeça sobre meus braços. Que coisa mais triste doutor delegado. Né?

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei... Parece Nelson Rodrigues!! (desculpe não sei se gosta..)
E nos prende até o fim. No começo tem cara mesmo dele estar falando com um padre ou coisa do gênero. Assim de forma ingênua beirando a inocência. Até que a narrativa vai se esclarecendo. Os fatos aos poucos nos encaminham passo a passo para a verdade...
Muito bom!! PARABÉNS!!