quinta-feira, 24 de abril de 2008

Onde andará Bia?
(crônica de elano ribeiro, publicada na revista "Crônicas Cariocas" - www.cronicascariocas.com)

Arte: Francci Lunguinho (blog Zumbido Literário)

Alguns leitores, ao se depararem com o título dessa crônica, poderão lembrar do romance “Onde Andará Dulce Veiga?” do saudoso Caio Fernando Abreu. Dentre estes “alguns”, provavelmente haverá aqueles que dirão: “O Elano plagiou o título do Caio”. E é verdade mesmo, eu confesso: a idéia surgiu por causa do livro em questão – maravilhoso, por sinal.

“Onde andará Dulce Veiga?” conta a história de um jornalista – personagem sem nome – que passa uma semana inteira numa busca frenética e às vezes obsessiva por uma famosa cantora dos anos cinqüenta, que desapareceu misteriosamente quando estava no auge de sua carreira. Quem gosta de uma boa ficção e ainda não leu esse excelente livro do Caio Fernando Abreu, não deve perder tempo, leia imediatamente.

Mas o que Dulce Veiga tem a ver com Bia? Nada, absolutamente – pelo menos que eu saiba. A Bia dessa crônica é a companheira de Léo, da música “Léo e Bia”, do menestrel Oswaldo Montenegro. Foi assistindo ao DVD “Intimidade”, lançado recentemente, que a minha curiosidade em saber onde andará Bia veio à tona. Até então, eu achava que Léo e Bia eram um casal saído da imaginação do Oswaldo, dois meros personagens fictícios. Mas não, eles são pessoas de carne e osso.

Fui saber disso porque as músicas no DVD “Intimidade” são intercaladas por depoimentos ou comentários do próprio cantor, de músicos que o acompanham nos shows e também por amigos. Eles contam histórias da vida de Oswaldo e de como surgiram determinadas músicas. Entre os amigos, está Léo. Porém, ele sempre aparece sozinho, inclusive durante o making of. Bia, nunca está ao lado dele. Ela simplesmente não aparece em momento algum. Léo, conta que Oswaldo Montenegro fez a música Léo e Bia como presente de casamento pra ele. Portanto, vem daí minha pergunta: onde andará Bia?

Fiquei pensando em tudo o que poderia ter acontecido com a “famosa” companheira de Léo. A julgar pela letra da música, a história de amor entre os dois é linda. Teria um amor que superou até as dificuldades impostas pela geografia (“como se não fosse tão longe, Brasília de Belém do Pará...”) acabado? Pode ser que sim. Mas se foi esse desfecho que teve o casal – que antes mesmo de eu saber que era real já me emocionava toda vez que eu ouvia a música –, prefiro não saber.

Que outros destinos Bia poderá ter tido? Ainda está com Léo, mas por ser muito tímida preferiu não aparecer nas gravações do DVD? No dia do casamento, depois de ouvir o presente que havia ganhado, fez uma rápida análise de seu relacionamento e descobriu que não amava tanto assim, e por isso desistiu de viver ao lado de Léo? Ou será – tomara que não – que Bia já não está mais fisicamente entre nós?

Cheguei a pensar na possibilidade de enviar um e-mail para o “criador” de Léo e Bia, pra que ele, talvez, pudesse saciar minha curiosidade. Mas desisti. Acho melhor ficar na dúvida, pois o que quer que tenha acontecido com Bia, será muito real, muito humano. E pra mim, essa realidade, essa humanidade, não cabe na linda e poética história de amor cantada tão docemente por Oswaldo Montenegro. Quero acreditar que Bia foi fazer uma breve viagem num submarino no lago Paranoá, e daqui a pouco estará de volta, pra continuar vivendo ao lado de seu grande amor.

terça-feira, 22 de abril de 2008

"como são adoráveis as pessoas que a gente não conhece muito bem..." (Millôr)

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Sinopse Sinopse Sinopse Sinopse

Estorvo
(Livro de Chico Buarque - Companhia das Letras, 160 pág.)

A campainha insiste, o olho mágico altera o rosto atrás da porta e o narrador inicia uma trajetória obsessiva, onde se depara com situações e personagens estranhamente familiares.

Narrado em primeira pessoa, Estorvo se mantém constantemente no limite entre o sonho e a vigília, projeções de um desespero subjetivo e crônica do cotidiano. E o olho mágico que filtra o rosto do visitante misterioso talvez seja a melhor matáfora da visão deformada com que o narrador, e o leitor com ele, seguirá sua odisséia.

Boa leitura!

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Voodoo child (ou Cachorro quente vodu)
(por elano ribeiro)

Estou atrás de um dos gols da quadra de futsal. Apenas uma grade e alguns poucos metros me separam da baliza. Posso sentir o cheiro do suor que sai dos poros da pele do goleiro. Quase posso ouvir os batimentos cardíacos do goleiro: acelerados, descompassados, arrítmicos, frenéticos. A rivalidade entre o time da casa e o visitante (dois municípios vizinhos) sempre foi conhecida na região, mas nunca esteve tão acirrada. Os “caras de lá” levaram dois dos melhores jogadores dos “caras de cá” pra essa temporada. Bola no centro, árbitros apostos, jogadores eufóricos, torcida tensa: vai começar o jogo. Vai começar a maior manifestação de amor e ódio do brasileiro (e pela quantidade de mulheres em volta da quadra, das brasileiras também).

Amor: o time vai bem, é líder do campeonato, todos os jogadores são craques (para alguns eles são quase semi-deuses), que normalmente nunca erram (apenas dão azar, às vezes), o treinador é o professor (use ele prancheta ou não, saiba ele falar bem ou não, saiba ele escrever corretamente ou não).

Ódio: o time vai mal, vai ser rebaixado, os jogadores são pernas-de-pau (alguns deles deveriam ir para o inferno), que normalmente nunca acertam um lance sequer (e quando acertam é porque deram sorte), o treinador é um burro e filho de uma mãe que nunca está presente para questionar os diversos “adjetivos” que lhes é atribuída.

Na quadra começa a partida, rola a pelota. O time da casa – considerado inferior depois da perda dos dois atletas para o time adversário – sai na frente: 1 x 0; o time visitante se mostra nervoso: 2 x 0; recuo um pouco da posição em que estava (cotovelos apoiados no muro que circunda a quadra) para dar lugar a uma menininha de seis anos de idade, que a todo momento me faz perguntas: tio, aquele ali de cabelo esquisito é do nosso time?; tio, por que é que tem um moço vestido todo de preto? (tenho vontade de lhe responder que ele está de luto pela própria morte, que irá acontecer caso ele não apite corretamente); tio, o que acontece se ninguém fizer gol?

A todo o instante a menininha de seis anos de idade sai do lugar que eu lhe cedi, diz que tem muita vontade de fazer xixi. Sempre fico na expectativa de que ela não vá voltar, e dessa forma, eu possa ocupar novamente o lugar que por direito é meu. Mas ela sempre volta. Dessa última vez, ainda voltou com um cachorro-quente nas mãos, praticamente sem molho algum, só mesmo uma salsicha dentro de um pão. Enquanto eu começo a me preocupar se a menininha de seis anos de idade não vai vomitar todo aquele sanduíche nos meus pés, o time da casa faz 3 x 0: delírio total da torcida. Acho que vamos golear. Mas na mesma proporção em que o sanduíche (cachorro-quente ou pão com salsicha, já não sei mais precisar o que é aquilo que a menininha de seis anos de idade come) vai acabando, também vai diminuindo o ímpeto do time da casa.

Começo a suspeitar que o potencial do time dos “caras de cá” têm a ver com aquela mistura de farinha, água, sal, ovos e mais a porra da salsicha (que de sólida, vai aos poucos se transformando numa coisa pastosa, de tanto que a menininha de seis anos de idade a comprime dentro daquele pão “suspeito”). Mais uma mordida: 3 x 1; outra mordida: 3 x 2. Sinto-me responsável, preciso deter a fúria-comilona-devoradora-de-cachorros-quentes: “por favor, a garotinha poderia terminar de comer seu sanduíche depois que o jogo acabar?”. “Não posso esperar tio, está muito gostoso e eu estou com muita fome”. O time dos “caras de lá” cometem a sexta falta: tiro livre pra gente. Vamos ampliar o placar e sair do sufoco. Não. O jogador (o melhor que temos, o craque, nossa promessa de gols) perde o gol. A bola vai justo na direção do goleiro. Percebi que no momento do chute aquele projeto de sanduíche levara mais uma mordida. Resta-me pedir ajuda aos céus. Deus parece ouvir minhas súplicas: encerra-se o 1º tempo.

Curiosamente, a menininha de seis anos de idade interrompe a sua degustação juntamente com o apito do arbitro, que finalizou a primeira etapa. Ela simplesmente parou de comer o maldito sanduíche-cachorro-quente-pão com-salsicha. Envolveu o que restava daquela massa já disforme num saco plástico. Certo da influência maligna que aquela coisa vem exercendo sobre o time dos “caras de cá”, pergunto aliviado: “ah, então você resolveu acabar de comer essa coisa em casa?” “Não, tio. Estou guardando a outra metade pra quando o jogo começar de novo. Tio, porque que o jogo parou?”. Achei melhor não responder, afinal deve haver algum parente da menininha de seis anos de idade por perto e, certamente, ele ou ela não vai gostar de ouvir minha resposta. Mas, sinceramente, já começo a achar que o jogo nem devia ter começado. Mas começou. E acaba de recomeçar.

Junto do apito estridente do “homem de preto”, ordenando que a bola volte a rolar sobre o piso de cimento, vem o barulho quase que insuportável do plástico se abrindo. De dentro dele, do saco plástico agora todo aberto, vem o cheiro enjoativo da dupla mais suspeita e perigosa da noite: o pão e a salsicha.
No mesmo instante, a fúria-comilona-devoradora-de-cachorros-quentes volta a abocanhar o que já foi um inocente sanduíche. Numa tentativa de demonstrar que não existe qualquer cumplicidade entre ela e a tal dupla infernal, a menininha de seis anos de idade grita o nome do time da casa, mas as palavras que saem da sua boca vêm acompanhadas de um farelo de cor indescritível, resultado do encontro da farinha, água, sal, ovos e mais a porra da salsicha com a sua saliva. A mal educada grita com a boca cheia, e junto dos farelos que irrompem da sua boca como lavas sedo jorradas de um vulcão no exato instante em que ele entra em erupção, vem mais um gol do time visitante: 3 x 3. “Porra, eles vão virar o jogo se essa criatura, que deveria ser um anjo – mas está longe disso –, não parar de comer essa porra nojenta.” – penso eu em voz quase baixa.

Estou definitivamente certo de que o sanduíche é uma espécie de vodu. A cada mordida que ele leva, os jogadores do time de cá perdem suas forças, e a fúria-comilona-devoradora-de-cachorros-quentes é a mestra involuntária dessa magia. O jogo prossegue num ritmo alucinante: o time visitante ataca sem parar, enquanto que o time dos “caras de cá” só faz se defender. Sinto que a coisa não vai acabar bem. Estou quase arrancando das mãos da menininha de seis anos de idade o que resta daquela mistura explosiva. Não. Se eu fizer isso vou ser linchado aqui mesmo. Um cara do meu tamanho e da minha idade atacando uma criança indefesa – todos vão achar que eu sou um louco faminto tentando roubar aquele resquício de sanduíche. Resolvo ficar na minha, junto com minhas orações, que hão de ser mais fortes que qualquer magia.

Faltam vinte segundos pra acabar a partida. Do jeito que a coisa vai o empate será um ótimo resultado pra gente. Nas mãos da menininha de seis anos de idade ainda resta uma pequena migalha daquilo que já foi alguma coisa. Ela se prepara pra abocanhar o último pedaço. O time dos “caras de lá” ataca velozmente pela esquerda. A menina abre ainda mais sua boca pra receber o último pedaço. O time dos “caras de lá” tem direito a um lateral, bem próximo do gol do time dos “caras de cá”. Faltam quinze segundos. O lateral é cobrado. Treze segundos. O último pedaço começa a adentrar na boca da fúria-comilona-devoradora-de-cachorros-quentes. Um jogador do time dos “caras de lá” passa pelo goleiro do time dos “caras de cá” e lhe dá uma cuspidela na cara. Dez segundos. O goleiro sai do gol com a bola em jogo pra reclamar com a arbitragem da agressão sofrida. Cinco segundos. A menininha de seis anos de idade aplica o golpe mortal naquilo que já foi alguma coisa. Ela morde. A bola é cruzada na área. O goleiro não está lá. A bola bate na perna do pivô do time dos “caras de cá” e entra lentamente pro fundo das redes: 4 x 3. O jogo acaba. O sanduíche acaba. Fomos derrotados. A menininha de seis anos de idade embola o saco plástico que revestia o sanduíche (ou aquilo que já foi alguma coisa) e joga pro alto. A embalagem plástica cai igual a um pára-quedas sobre minha cabeça. A fúria-comilona-devoradora-de-cachorros-quentes some em meio à multidão que, desolada e frustrada, retorna aos seus lares (alguns não menos frustrantes e desoladores). O que eles e mais os jogadores do time dos “caras de cá” (que agora estão todos reunidos sentados no centro da quadra tomando um esporro do treinador) não sabem, mas eu tenho certeza, é que o jogo foi perdido por causa da dupla mais suspeita e infernal da noite: um pão e uma salsicha. Ambos “comandados” (ou seriam, treinados?) por uma menininha de seis anos de idade.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Livros, cheiros e cliques
(crônica de Elano Ribeiro, publicada na revista "Crônicas Cariocas" - www.cronicascariocas.com)

*Ilustração criada por Francci Lunguinho, autor do blog Zumbido Literário - http://www.globoonliners.com.br/icox.php?mdl=pagina&op=listar&usuario=7727

Quando estou dentro de uma livraria, me sinto como uma criança numa loja de brinquedos. Fico ansioso, quero tocar nos livros, folheá-los, sentir sua “pele” e até mesmo o seu cheiro. Isso mesmo: eu adoro sentir o cheiro dos livros. Por conta disso sempre preferi as livrarias pequenas, mais aconchegantes. Pois penso que nelas você pode ficar mais à vontade, além de ter sempre um vendedor a sua disposição pra lhe ajudar no quer for preciso. É possível até mesmo ouvir o barulhinho da máquina de café e, prazerosamente, sentir o aroma delicioso que ela exala. As grandes, as “Megastores” com aquele monte de gente entrando e saindo sem parar, todas falando alto e ao mesmo tempo, com interesses diversos – uns entram por causa dos livros, mas também tem aqueles que estão ali somente por causa dos CDs, dos DVDs e do cybercafé – às vezes me causam a impressão de estar numa feira ao ar livre. Sem falar que os funcionários estão sempre “escondidos” atrás de um monitor de computador ou andando freneticamente pela loja, tendo que dar atenção a várias pessoas ao mesmo tempo – o que faz com que ninguém receba, de fato, atenção alguma.

Já nos Sebos, vivo uma outra situação. Ao pegar um livro, sinto que ele já tem uma “história de vida”. A quem ele pertenceu? O que será que aquele exemplar, que ficou por muito tempo esquecido numa estante da sala ou do quarto de alguém, já não deve ter presenciado? Momentos de amor? De ciúmes? Famílias alegres, reunidas em torno da mesa em dias de festa? Ou o isolamento – voluntário ou não – de um ser solitário, convivendo diariamente com o silêncio? Seja o que for que aquele exemplar tenha vivido, é como se agora – exposto ali no Sebo – ele estivesse pedindo pra ser novamente adotado. E aquele que o adotar, estará levando consigo um “ser” carregado de boas ou más lembranças, com suas folhas limpas e bem cuidadas, ou sujas, amarrotadas e manchadas. Há uma alma, ou muitas almas nos livros.
Seja como for, numa livraria grande ou pequena, ou mesmo num Sebo, um livro será sempre um LIVRO. Por isso, ao contrário do que muitos dizem e professam, não acredito que Ele, na sua forma física e tradicional, seja substituído pelos chamados e-books (livros virtuais). Primeiro porque, mesmo que você esteja deitado na sua cama, utilizando um computador portátil, sempre será extremamente cansativo e desconfortante ler um exemplar inteiro através de um monitor. E segundo porque, nada substituirá o prazer de se ter um livro nas mãos, seja no momento da leitura ou no não menos prazeroso instante da compra do mesmo, naquela pequena, aconchegante e “saborosa” livraria, com todos os seus cheiros.

Talvez venha daí a minha dificuldade e relutância em comprar livros pela internet. Por diversas vezes entrei nas livrarias virtuais, escolhi o exemplar que eu queria, passei por diversas etapas para concluir a compra, mas na hora de dar o último clique com o mouse, para finalizar o pedido, eu desistia, convencido de que seria muito melhor esperar um pouco, ir até a livraria de uma cidade vizinha (visto que no município onde resido não existe nenhuma – que vergonha eu sinto em dizer isto) e realizar a compra da forma tradicional, o que sem dúvida alguma, pra mim, em se tratando de livros, será sempre a melhor, por mais que alguns venham argumentar sobre a praticidade e a comodidade que as compras pela grande rede proporcionam.

Mas, dias atrás, tomado pelo impulso de adquirir e ler rapidamente o livro “Aos meus amigos”, da Maria Adelaide Amaral, fui até o último clique (e olha que ironia: os correios entraram em greve). Porém, como era noite, bem próximo da madrugada, e havia quase uma completa ausência de sons a minha volta, consegui sem muita dificuldade, no exato momento em que eu apertei o botão do pequeno “ratinho” – que no meu caso é um sapo verde –, imaginar o livro em minhas mãos, e até mesmo sentir o seu cheiro. Consegui, inclusive, ouvir o delicado som da minha cafeteira, vindo lá da cozinha.

sábado, 5 de abril de 2008

Eu deveria cantar.
Rolar de rir ou chorar, eu deveria, mas tinha desaprendido essas coisas. Talvez então pudesse acender uma vela, correr até a Igreja da Consolação, rezar um Pai Nosso, uma Ave Maria e uma Glória ao Pai, tudo que eu lembrava, depois enfiar algum trocado, se tivesse, e nos últimos meses nunca, na caixa de metal "Para as Almas do Purgatório". Agradecer, pedir luz, como nos tempos em que tinha fé.

(trecho do livro "ONDE ANDARÁ DULCE VEIGA?", de Caio Fernando Abreu - Editora AGIR, 256 pág.)

terça-feira, 1 de abril de 2008

Com morangos e chantili
(conto de elano ribeiro)

Padre, antes de qualquer coisa, quero deixar bem claro que eu não estou aqui pra me confessar. Deus nunca soube de minha existência, e é melhor que continue não sabendo, até porque eu nunca precisei dele pra nada. Outra coisa: eu não tenho pressa, portanto, não tente me descartar rapidamente, como fez com aquela senhora negra que acabou de sair daqui. É, padre, meu pai tinha razão, o pobre é mesmo um fodido. Sou capaz de afirmar que os supostos pecados da senhora negra são bem menores do que as da branca, com roupas de madame que o senhor atendeu antes. Porém, a penitência aplicada à primeira, que, provavelmente não contribui com o dízimo, deve ter sido bem maior. Não se preocupe, padre, Deus irá lhe perdoar. O que me traz aqui é a vontade de falar sobre algo que aconteceu hoje. Precisava contar tudo pra alguém. Então, eu pensei: pra que procurar um psicólogo? Vou à igreja, onde eu não preciso pagar um tostão sequer. Padres e psicólogos são iguaizinhos, ambos pensam que a solução para todos os problemas da humanidade está nos seus ouvidos, na atitude complexa de saber ouvir os dramas e aflições dos outros.

Vamos ao que interessa: eu matei uma pessoa. Isso mesmo padre, eu matei um homem, ou melhor, matei um verme que não vai fazer falta alguma pra humanidade. Vou contar como foi isso: sou prostituta. Não precisa fazer essa cara de quem está surpreso, padre. No fundo, o senhor já sabia. Depois de tantos anos nessa profissão, parece que chega uma hora em que fica escrito na nossa testa: sou puta. Não. Não vou vir com aquele papo furado, do tipo: a vida nunca me deu oportunidades. O que eu mais tive na vida foram oportunidades. Estudei em colégios de primeira, viajei pra caramba, cheguei até a fazer bons estágios na época da faculdade. Mas troquei tudo pelo que sou hoje, e não me arrependo. Gosto de sexo. Sempre gostei. E gosto de dinheiro. Pronto, aos vinte e três anos achei a fórmula mágica pra minha vida. Sempre fui bonita e assediada, padre. Então pensei: vou cobrar pra transar. E cá estou eu: uma vadia chique, cheia de dinheiro. Mas também uma pretensa assassina, de rosto inchado pelas porradas que o miserável me deu antes de ir pro o inferno. Mas nada que um bom banho e umas boas horas de sono não resolvam.

Há cinco meses que eu vinha saindo com o tal sujeito. Era um coroa ricaço, empresário, dono de três grandes fábricas. Provavelmente um explorador de mão de obra que pagava salários de miséria aos seus funcionários. Mas isso não vem ao caso, cada um que resolva os seus problemas. A questão é que ontem o velho-empresário-comedor-de-prostitutas me pegou na porta do edifício onde moro e me levou direto pra um motel. Até aí tudo normal, era sempre assim. Ele não era de ficar inventando coisas na hora do sexo. O velho se satisfazia, ficava falando sobre um monte de coisas que não me interessava saber, vazia questão de me chamar de puta, me pagava e fim de papo. Acontece que dessa vez o safado cismou que eu tinha que fazer uma coisa: ele saiu do quarto, voltou até o carro e entrou com duas caixas de chantili e uma porção de morangos. Padre: padres sentem tesão? Deixa pra lá. O fato é que o velho queria que eu espalhasse todo aquele creme pelo seu corpo, jogasse os morangos por cima para que depois eu fosse lambendo tudo, até não sobrar qualquer vestígio de morango ou chantili naquele monte de carne flácida e nojenta. Eu me recusei padre. Disse a ele que eu não faria aquilo. Não faria porque eu não queria, mas também porque eu não podia. Eu tenho diabetes, padre. Eu ia ter um troço se engolisse todo aquele creme.

Quando eu contei que era diabética, o miserável deu uma sonora gargalhada. Debochou da minha cara. Disse: desde quando puta tem essas frescuras? Eu estou te pagando sua vadia, e por causa disso você tem que fazer o que eu quiser. Eu disse que eu só iria fazer o que eu quisesse. Foi aí que ele começou a ficar violento, partiu pra cima de mim, me agarrou pelos cabelos e me jogou no chão. O velho-empresário-comedor-de-prostitutas veio pra cima de mim e me deu três tapas na cara. Porradas fortes. O sangue que escorria do meu nariz se misturava ao que vinha de dentro da minha boca. Nem sei como eu não fiquei sem alguns dentes. Minha raiva foi tanta que eu tirei forças não sei de onde, dei-lhe um empurrão. Comecei a correr pelo quarto gritando, xingando. Não tinha medo, padre. Tinha era muita raiva daquele ser asqueroso. Ele começou a correr como um louco atrás de mim, passou a me jogar objetos em cima. Acho que ele não estava no seu estado normal, pois nunca havia visto ele violento assim. De repente o desgraçado parou, arregalou os olhos levou uma das mãos ao peito, deu um grito e caiu. Caiu bem próximo aos meus pés. Tão próximo que eu pude dar um chute bem na sua cara. Lembrei-me que certa vez, não faz muito tempo, ele me disse que era hipertenso e, por isso, sempre carregava consigo um caixinha com remédios para controlar a pressão alta. O velho começou a ficar roxo, suava muito, sua urina escorria perna abaixo enquanto se contorcia de dor. Com muito custo, balbuciando, ele me pediu que pegasse um comprimido do tal remédio e colocasse embaixo da sua língua. Foi aí que meu lado assassina de velho-empresário-comedor-de-prostitutas entrou em ação. Padre, em vez do remédio, o senhor pode imaginar o que eu coloquei na boca do miserável? Chantili, padre. Comecei a enfiar na boca do indivíduo todo o creme que havia nas duas caixas. Eu enchia a boca dele de chantili e ainda por cima tampava suas narinas. Quando não havia mais nem um tantinho de creme nas caixas, eu ainda tive a frieza de empurrar os morangos inteiros guela abaixo no safado. Tudo isso demorou uns dez minutos padre, até que por fim ele deu o seu último suspiro.

É isso padre, foi assim que tudo aconteceu. O que? O senhor quer saber se eu estou arrependida? Não, padre. Eu não me arrependo do que eu fiz. Posso dizer que eu até senti prazer. Não. O senhor não vai vir com essa de que eu tenho de rezar cem Pai Nossos e duzentas Ave Marias. Eu já disse que não vim aqui pra me confessar. Só queria desabafar. Agora já me sinto bem melhor. Ah, a propósito padre, antes de sair do motel eu fiz uma limpa na carteira do velho. Estou pensando em doar todo o dinheiro pra igreja do Senhor, mas acho que o senhor padre não vai querer, não mesmo? Afinal não é um dinheiro, digamos “limpo”. Ah, o senhor aceita! Sei. É para ajudar nas obras de caridade? Entendo. Então vou deixar lá na secretaria da igreja. Padre, obrigado pela atenção.