domingo, 25 de março de 2007

Travessia
(por Flora Regina)

Precisava sair, sufocava dentro de si mesma. A própria casa a oprimia, as paredes ora encolhendo, ora se expandindo, tornando-a mais frágil e insignificante a cada momento. O coração pulsava debilmente, a respiração tornava-se cada vez mais difícil, a visão turva e a pouca audição lhe negavam a percepção do que ocorria à sua volta, as mãos já não sentiam o que tocavam, as pernas e os braços trêmulos a impediam de mover-se, fazendo com que se arrastasse pelos corredores, apoiando-se aos móveis e tropeçando nos pedaços do passado que estavam espalhados pelo chão. O cão se coçava gemendo fracamente para as pulgas que o importunavam, ou rosnava baixinho, protegendo um osso imaginário enquanto cochilava. A gata dormitava à janela, observando indiferente a angústia que imperava em seu redor.

Suspirou profundamente e num esforço supremo, arrastou-se até a porta e a abriu de par em par, sorvendo devagar a brisa que atravessou o batente, entrou por suas narinas, revigorando-lhe as forças e a convidando para sair. O domingo amanheceu radiante, iluminado pelos primeiros raios de sol, que se refletiam no frescor do orvalho da madrugada que se despedia mansamente.

Vacilando como se tivesse acabado de aprender a andar, pisou descalça no jardim sentindo a grama úmida refrescar-lhe os pés cansados e doloridos. Aspirou o perfume das flores que eram disputadas pelos pássaros em algazarra e provou dos frutos que as árvores deixavam cair generosamente ao sabor do vento que ia e vinha entre elas, como um fiel jardineiro a cuidar de seu pomar.

Atravessou o jardim até a rua vazia, onde a sombra das árvores tornava tranqüila a caminhada, que a levou a um parque imenso, adornado por um lago de águas cristalinas e muitos bancos espalhados em redor.

Fora atraída pelo suave murmúrio das pessoas que conversavam placidamente enquanto caminhavam por entre as alamedas, acompanhadas de perto por bandos de crianças que brincavam, riam e cantavam, numa folia sem fim.

Quis retornar, seu aspecto rude a inibia de mostrar-se para aquela gente. E, ao tentar fazê-lo, uma bela senhora de meigo sorriso, aproximou-se estendendo as mãos e convidando-a para um abraço, enquanto lhe falava docemente, numa voz que ela conhecia muito bem “Seja bem-vinda, filha, estávamos à sua espera!”.

O cão e a gata foram as únicas testemunhas de sua partida. Ficaram para trás, observando-a atravessar serenamente a fronteira de sua vida. Adormeceram em seguida, sonhando com seus afagos e esperando...


Flora, 17-03-2007

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2 comentários:

maria claudete disse...

Linda e comovente a explanação desta "travessia" entre a vida e a morte, me emocionei, quiça todos possamos fazê-la , um dia, de forma tão pungente, parabéns !
Maria Claudete.

Wilame Prado disse...

Cara amiga Flora, achei seu texto belo, sincero, bem escrito...
Salvou o meu dia. Minha cabeça estava a mil, com vários problemas, mas depois de ler seu texto e ouvindo radiohead, pensei: não devo esquentar tanto, jamais...

Beijos, aguardo seus e-mails pessoais e não comunitários.