quinta-feira, 22 de março de 2007

Crônica escrita por Rubem Alves, sobre a afirmação do Papa Bento XVI: "O 2º casamento é uma praga"
A praga
(Rubem Alves)

É bom atentar para o que o papa diz. Porta-voz de Deus na Terra, ele só pensa pensamentos divinos. Nós, homens tolos, gastamos o tempo pensando sobre coisas sem importância tais como o efeito estufa e a possibilidade do fim do mundo. O papa vai direto ao que é essencial: "O segundo casamento é uma praga!"
Está certo. O casamento não pertence à ordem abençoada do paraíso. No paraíso não havia casamento. Na Bíblia não há indicação de que as relações amorosas entre Adão e Eva tenham sido precedidas pelo cerimonial a que hoje se dá o nome de casamento: o Criador, celebrante, Adão e Eva nus, de pé, diante de uma assembléia de animais, tudo terminando com as palavras sacramentais: "E eu, Jeová, vos declaro marido e mulher. Aquilo que eu ajuntei os homens não podem separar..."
Os casamentos, o primeiro, o segundo, o terceiro, pertencem à ordem maldita, caída, praguejada, pós-paraíso. Nessa ordem não se pode confiar no amor. Por isso se inventou o casamento, esse contrato de prestação de serviços entre marido e mulher, testemunhado por padrinhos, cuja função é, no caso de algum dos cônjuges não cumprir o contrato, obrigá-lo a cumpri-lo.
Foi um padre que me ensinou isso. Ele celebrava o casamento. E foi isso que ele disse aos noivos: "O que vos une não é o amor. O que vos une é o contrato". Aprendi então que o casamento não é uma celebração do amor. É o estabelecimento de direitos e deveres. Até as relações sexuais são obrigações a ser cumpridas.
Agora imaginem um homem e uma mulher que muito se amam: são ternos, amigos, fazem amor, geram filhos. Mas, segundo a igreja, estão em estado de pecado: falta ao relacionamento o selo eclesiástico legitimador. Ele, divorciado da antiga esposa, não pode se casar de novo porque a igreja proíbe a praga do segundo casamento. Aí os dois, já no fim da vida, são obrigados a se separar para participar da eucaristia: cada um para um lado, adeus aos gestos de ternura... Agora está tudo nos conformes. Porque Deus não enxerga o amor. Ele só vê o selo eclesial.
O papa está certo. O segundo casamento é uma praga. Eu, como já disse, acho que todos são uma praga, por não ser da ordem paradisíaca, mas da maldição. O símbolo dessa maldição está na palavra "conjugal": do latim, "com"= junto e "jugus"= canga. Canga, aquela peça pesada de madeira que une dois bois. Eles não querem estar juntos. Mas a canga os obriga, sob pena do ferrão...
Por que o segundo casamento é uma praga? Porque, para havê-lo, é preciso que o primeiro seja anulado pelo divórcio. Mas, se a igreja admitir a anulação do primeiro casamento, terá de admitir também que o sacramento que o realizou não é aquilo que ela afirma ser: um ato realizado pelo próprio Deus. Permitir o divórcio equivale a dizer: o sacramento é uma balela. Donde, a igreja é uma balela... Com o divórcio ela seria rebaixada do seu lugar infalível e passaria a ser apenas uma instituição falível entre outras. A igreja não admite o divórcio não é por amor à família. É para manter-se divina...
A igreja, sábia, tratou de livrar seus funcionários da maldição do amor. Proibiu-os de se casarem. Livres da maldição do casamento, os sacerdotes têm a suprema felicidade de noites de solidão, sem conversas, sem abraços e nem beijos. Estão livres da praga...
Folha de S.Paulo, 20 mar. 2007.

3 comentários:

A Burra Nas Couves disse...

Aplausos de pé! Que mais posso dizer? Monumental, este texto! Estou fan!

maria claudete disse...

Não pretendo discutir o que foi colocado, entretanto creio que de acordo com os motivos que levam cada conjuge ao casamento e os que os fazem permanecer nele , são determinantes de importância para cada um. Na verdade , ironias à parte, quem sabe realmente o que é casamento? à luz da Igreja, um Sacramento, à luz da razão um contrato como foi aqui explicitado, e dependendo das circusntâncias poderá até ser anulado pela própria Igreja, dismistificando, portanto, a indissolubilidade não abordada no texto. Quando o homem e mulher descobrirem que quem casa , se une para conviver com defeitos , com erros, com catinga etc e aí entende-se a "canga" , o casamento será eterno, porque é muito fácil amar o que é bom, mas não estamos no paraíso, estamos em busca dele, e a convivência se estabelece nas diferenças e não nas similitudes. Posso até ser uma inocente útil, mas é assim que penso o casamento.
De qualquer forma , achei o texto brilhante e a abordagem pertinente e coerente com o pensamento do escritor e sua compreensão em relação à afirmação Papal.

Clara disse...

Consegui encontrar as palavras que se perderam, admiradas com a sua incomparável alma literária, você é ótimo! Também nunca fui muito fã de casamentos e outras coisas que os seres pensantes, desse planeta, inventaram pra chamar pelo nome.Sou muito religiosa e não posso aceitar, que você fale assim do que sempre acreditarei enquanto tiver vida ou a vida me tiver, morrerei acreditando no amor, mesmo que seja apenas para não deixar meus sonhos morrerem de fome.

GRANDE ABRAÇO NO CORAÇÃO