sexta-feira, 24 de agosto de 2007

O corredor suicida
(por Elano Ribeiro)


O velório e o enterro transcorreram de forma serena, apesar da perplexidade e incompreensão por parte dos familiares e amigos com relação ao ocorrido. O defunto em questão era o Coronel da Reserva, senhor Alcides Coimbra. O sobrenome do Coronel era sinônimo de respeito dentro do exército, afinal, desde seu bisavô, que a família mantém a tradição de ter sempre um membro no quadro de oficiais do exército brasileiro, servindo à pátria de maneira honrosa. Alcides também era reverenciado na caserna por ser um exímio atleta, fato que lhe rendeu um codinome: “O corredor”. Assim como seus antepassados que usaram fardas, ele sempre foi um homem de “mãos pesadas” com seus subordinados. O nome do Coronel também era associado a outras “façanhas” não tão nobres dentro dos quartéis do Rio de Janeiro. Comenta-se, que “O corredor” era temido por todos os presos políticos na época da ditadura. Pobre daquele que caísse nos porões escuros e sujos dos quartéis cariocas. Mas, tudo isso nunca foi provado, ficou só no campo da especulação.

Alcides nasceu e morou sempre no mesmo endereço, um casarão no bairro da Urca. Imóvel pomposo adquirido por seu bisavô. Na frente existia um belo jardim com as mais variadas qualidades de plantas, rosas e flores. Duas palmeiras imperiais marcavam o início da escadaria que levava à imensa varanda. Outra especulação, essa dos vizinhos mais próximos, era de que nos fundos do quintal, contrastando com a beleza do jardim, havia um tronco onde muitos negros sentiram a fúria do bisavô do Coronel Alcides. Foi nesse mesmo casarão, que ultimamente já apresentava alguns sinais de deterioração e o jardim já não era tão belo, que “O corredor” viu seus dois filhos crescerem. Um seria o orgulho do Coronel, o outro, o mais jovem, seria considerado a desonra da família, não tendo sido expulso de casa por causa da intervenção de sua mãe. Tudo isso porque, enquanto o filho mais velho seguiu as tradições militares dos Coimbra, já sendo um Primeiro Tenente de futuro promissor no nosso exército, o rapaz mais jovem seguiu o mundo das artes, tornou-se artista plástico, e dos bons. Mas o velho Coronel nunca conseguiu ver qualidade nenhuma em qualquer artista que fosse. Por diversas vezes excomungou o filho mais jovem dizendo que ele era desse jeito porque a esposa tinha ficado grávida sem querer. Dizia ainda: “O Brasil não necessita de artistas que só sabem segurar pincéis e espátulas, e, sim, de homens fortes e determinados que segurem nossos fuzis e baionetas e estejam sempre prontos para defender nosso solo sagrado”. Pra piorar as coisas, o Coronel via seu filho mais velho poucas vezes durante o ano. É que o rapaz sempre optou por servir ao exército em lugares muito distantes do Rio, aparecendo por aqui apenas no Natal, no dia das mães ou dos pais e, numa outra data qualquer, que, ultimamente, vinha sendo no mês de julho. Quando questionado pelo pai sobre o porquê de servir sempre tão distante do Rio e Janeiro, o filho mais velho respondia: “Pai, eu preciso estar lá pros lados da Amazônia, nossa fronteira é enorme e ainda existem muitas terras a serem desbravadas pelo exercito. Além disso, os recrutas de lá são rebeldes, não estão acostumados com um comando sério, eles precisam das mãos fortes e pesadas dos Coimbra”. Pronto, estava o pai ainda mais orgulhoso de seu filho Tenente e satisfeitíssimo com a resposta.

E foi exatamente num desses dias de julho, mais precisamente num domingo, que se deu a tragédia. Diariamente, o Coronel Alcides saía pra correr. Sempre fez questão de manter a forma física e a saúde em dia, mesmo depois de ter saído da caserna. Normalmente, ia de carro até Copacabana e fazia seu “cooper” lá no calçadão, mas naquele domingo resolveu ficar aqui mesmo na Urca. Havia lido no jornal do dia anterior, que Copacabana seria tomada por uma multidão de gays, lésbicas e simpatizantes, para mais uma edição da Parada Gay. Esbravejou e praguejou, junto ao filho mais velho: “Meu filho, essas aberrações mereciam os porões do exército. A cidade, o país e o mundo estão infestados desses seres repugnantes. E o pior, tem gente que acha tudo normal”. O filho Tenente pigarreou e disse num tom não muito convincente: “Concordo papai”. Lá ia o Coronel, em sua corrida cadenciada, corpo esguio e olhar sempre adiante, quando algo lhe chamou a atenção enquanto passava em frente a um pequeno bar do outro lado da calçada. Um grupo de jovens, desses a quem ele queria apresentar os temidos porões, fazia uma espécie de concentração para a parada que marca o Dia do Orgulho Gay. “O Corredor” ficou revoltado: “Porque os bastardos não estão lá em Copacabana?” Pra piorar, ele não escapou dos fius fius de alguns dos alegres jovens, todos vestindo trajes muito chamativos e coloridos, com plumas e outros adereços mais. De súbito, do meio daqueles intrépidos GLSs, partiu um olhar que encontrou em cheio o olhar do Coronel, que incrédulo deu um grito que ecoou por boa parte da Urca, um grito de raiva, de fúria. E como se estivesse num campo de batalha, atravessou a rua inesperadamente, parecendo avançar sobre as frentes inimigas. Foi jogado ao alto por um fusca que passava e não teve tempo de parar, aquele corpo alto e forte caiu sobre o asfalto. Em meio à multidão de curiosos que o cercava, “O Corredor” ainda teve tempo de encarar o filho Tenente – graciosamente travestido de Drag Queen – e, mesmo sem forças pra dizer mais uma palavra que fosse, deixou claro, através de sua expressão de dor, que amaldiçoava o filho para todo o sempre.

Nunca ninguém soube da verdade. O filho mais velho tratou de sair rapidamente do local onde o pai falecera, deixando no rosto da vítima um brilho de purpurina, devido a um último afago. Durante o sepultamento, enquanto o corpo do Coronel Alcides era devidamente baixado à sepultura da família, os filhos – que se mantiveram afastados durante todo o velório, e assim continuavam – tinham comportamentos bem diferentes. O mais velho chorava e a todo instante balbuciava que havia perdido sua referência de vida. O mais novo continuava em silêncio, e se olhássemos bem para ele, era possível perceber uma covinha na lateral dos lábios, indício de um discreto sorriso.

Naquela mesma manhã do sepultamento, um jornal popular e sensacionalista aqui do Rio de Janeiro noticiou em uma de suas páginas, com uma pequena nota: “O exercito brasileiro chora a morte de um de seus mais ilustres representantes, o Coronel Alcides Coímbra, também conhecido pelos colegas de farda como “O Corredor”. Ao que tudo indica, o Coronel cometeu suicídio, atirando-se na frente de um fusca que passava em alta velocidade. Nos quartéis cariocas, os recrutas já tratam o falecido pela alcunha de “O Corredor Suicida”.

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