sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Almas, canetas e grafites
(por elano ribeiro)

Escrevi, certa vez, que os livros têm alma. Uma ou muitas, isso vai depender do número de “donos” que eles tiveram, por quantas prateleiras passaram e de tudo que “presenciaram”, do tipo de tratamento que receberam etc. Acredito que essas almas também deveriam ser intocáveis, invioláveis.
Acontece, que eu tenho a mesma mania de uma infinidade de outros leitores pelo mundo afora, a de manchar com tinta de caneta ou com grafite as almas dos livros, grifando frases e palavras, que por algum motivo eu desejo não esquecer mais. Como se o fato delas estarem sublinhadas seja garantia de que eu vá me lembrar de tudo o que li.
Muito provavelmente, o grande e real sentido de ferirmos as almas dos livros com nossas canetas e lápis, seja o de deixarmos pistas sobre a forma como pensamos a vida e que tipo de pessoas nós somos, para os que, algum dia, venham a ler um determinado exemplar que já passou por nossas mãos.
Foi com esse pensamento que resolvi pegar alguns livros meus, de forma aleatória, e verificar que textos e palavras eu havia destacado. Será que se eu estivesse lendo-os atualmente faria as mesmas “observações”? – perguntei-me antes de iniciar as leituras. E ao final, concluí que sim, que ainda penso como antes – pelo menos até agora. Vamos a alguns deles:
“... Só sei que de lábio em lábio fui aprendendo que o amor não merece um beijo que não seja, no mínimo, indecente...” (Divã – Martha Medeiros).
“... Depois de tanto tempo vivendo com uma pessoa, a gente não é mais tão único como supõe, o ser humano é solvente: se mistura com a vida dos outros e depois só com mágica é possível separas as partes...” (Divã – Martha Medeiros).
“... Aqui sentada, abandonada, contemplo o mundo imundo, o tudo e o nada, assim perdida, alucinada...” (Onde andará Dulce Veiga? – Caio Fernando Abreu).
“... Esse é o destino dos ninhos, de todos os ninhos: o abandono” (Um mundo num grão de areia – Rubem Alves).
“... Escrevo sem poder escrever e: por isso escrevo. De resto, não saberia o que fazer com este corpo que, desde sua chegada ao mundo, não consegue sair do lugar...” (A chave de casa – Tatiana Salen Levy).
“... As manhãs são boas para acordar dentro delas, beber café, espiar o tempo. Os objetos são bons de olhar para eles, sem muitos sustos, porque são o que são e também nos olham, com olhos que nada pensam...” (Os dragões não conhecem o paraíso – Caio Fernando Abreu).
Sempre faço um grande esforço para não manchar as almas dos livros que me são emprestados. Confesso que já precisei recorrer a um bom lápis-borracha, numa tentativa desesperada de cicatrizar a alma de um livro alheio. Felizmente, o ferimento não teve conseqüências mais sérias, tendo o exemplar saído de minha prateleira de livros praticamente como chegou: com uma alma ainda leve, sem o “peso” das tintas e dos grafites, sem os rabiscos. Porém, também saiu de minhas mãos sem a possibilidade de revelar ao seu dono algo que, secretamente, eu havia confidenciado através das folhas quase intactas daquele livro.

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