terça-feira, 1 de abril de 2008

Com morangos e chantili
(conto de elano ribeiro)

Padre, antes de qualquer coisa, quero deixar bem claro que eu não estou aqui pra me confessar. Deus nunca soube de minha existência, e é melhor que continue não sabendo, até porque eu nunca precisei dele pra nada. Outra coisa: eu não tenho pressa, portanto, não tente me descartar rapidamente, como fez com aquela senhora negra que acabou de sair daqui. É, padre, meu pai tinha razão, o pobre é mesmo um fodido. Sou capaz de afirmar que os supostos pecados da senhora negra são bem menores do que as da branca, com roupas de madame que o senhor atendeu antes. Porém, a penitência aplicada à primeira, que, provavelmente não contribui com o dízimo, deve ter sido bem maior. Não se preocupe, padre, Deus irá lhe perdoar. O que me traz aqui é a vontade de falar sobre algo que aconteceu hoje. Precisava contar tudo pra alguém. Então, eu pensei: pra que procurar um psicólogo? Vou à igreja, onde eu não preciso pagar um tostão sequer. Padres e psicólogos são iguaizinhos, ambos pensam que a solução para todos os problemas da humanidade está nos seus ouvidos, na atitude complexa de saber ouvir os dramas e aflições dos outros.

Vamos ao que interessa: eu matei uma pessoa. Isso mesmo padre, eu matei um homem, ou melhor, matei um verme que não vai fazer falta alguma pra humanidade. Vou contar como foi isso: sou prostituta. Não precisa fazer essa cara de quem está surpreso, padre. No fundo, o senhor já sabia. Depois de tantos anos nessa profissão, parece que chega uma hora em que fica escrito na nossa testa: sou puta. Não. Não vou vir com aquele papo furado, do tipo: a vida nunca me deu oportunidades. O que eu mais tive na vida foram oportunidades. Estudei em colégios de primeira, viajei pra caramba, cheguei até a fazer bons estágios na época da faculdade. Mas troquei tudo pelo que sou hoje, e não me arrependo. Gosto de sexo. Sempre gostei. E gosto de dinheiro. Pronto, aos vinte e três anos achei a fórmula mágica pra minha vida. Sempre fui bonita e assediada, padre. Então pensei: vou cobrar pra transar. E cá estou eu: uma vadia chique, cheia de dinheiro. Mas também uma pretensa assassina, de rosto inchado pelas porradas que o miserável me deu antes de ir pro o inferno. Mas nada que um bom banho e umas boas horas de sono não resolvam.

Há cinco meses que eu vinha saindo com o tal sujeito. Era um coroa ricaço, empresário, dono de três grandes fábricas. Provavelmente um explorador de mão de obra que pagava salários de miséria aos seus funcionários. Mas isso não vem ao caso, cada um que resolva os seus problemas. A questão é que ontem o velho-empresário-comedor-de-prostitutas me pegou na porta do edifício onde moro e me levou direto pra um motel. Até aí tudo normal, era sempre assim. Ele não era de ficar inventando coisas na hora do sexo. O velho se satisfazia, ficava falando sobre um monte de coisas que não me interessava saber, vazia questão de me chamar de puta, me pagava e fim de papo. Acontece que dessa vez o safado cismou que eu tinha que fazer uma coisa: ele saiu do quarto, voltou até o carro e entrou com duas caixas de chantili e uma porção de morangos. Padre: padres sentem tesão? Deixa pra lá. O fato é que o velho queria que eu espalhasse todo aquele creme pelo seu corpo, jogasse os morangos por cima para que depois eu fosse lambendo tudo, até não sobrar qualquer vestígio de morango ou chantili naquele monte de carne flácida e nojenta. Eu me recusei padre. Disse a ele que eu não faria aquilo. Não faria porque eu não queria, mas também porque eu não podia. Eu tenho diabetes, padre. Eu ia ter um troço se engolisse todo aquele creme.

Quando eu contei que era diabética, o miserável deu uma sonora gargalhada. Debochou da minha cara. Disse: desde quando puta tem essas frescuras? Eu estou te pagando sua vadia, e por causa disso você tem que fazer o que eu quiser. Eu disse que eu só iria fazer o que eu quisesse. Foi aí que ele começou a ficar violento, partiu pra cima de mim, me agarrou pelos cabelos e me jogou no chão. O velho-empresário-comedor-de-prostitutas veio pra cima de mim e me deu três tapas na cara. Porradas fortes. O sangue que escorria do meu nariz se misturava ao que vinha de dentro da minha boca. Nem sei como eu não fiquei sem alguns dentes. Minha raiva foi tanta que eu tirei forças não sei de onde, dei-lhe um empurrão. Comecei a correr pelo quarto gritando, xingando. Não tinha medo, padre. Tinha era muita raiva daquele ser asqueroso. Ele começou a correr como um louco atrás de mim, passou a me jogar objetos em cima. Acho que ele não estava no seu estado normal, pois nunca havia visto ele violento assim. De repente o desgraçado parou, arregalou os olhos levou uma das mãos ao peito, deu um grito e caiu. Caiu bem próximo aos meus pés. Tão próximo que eu pude dar um chute bem na sua cara. Lembrei-me que certa vez, não faz muito tempo, ele me disse que era hipertenso e, por isso, sempre carregava consigo um caixinha com remédios para controlar a pressão alta. O velho começou a ficar roxo, suava muito, sua urina escorria perna abaixo enquanto se contorcia de dor. Com muito custo, balbuciando, ele me pediu que pegasse um comprimido do tal remédio e colocasse embaixo da sua língua. Foi aí que meu lado assassina de velho-empresário-comedor-de-prostitutas entrou em ação. Padre, em vez do remédio, o senhor pode imaginar o que eu coloquei na boca do miserável? Chantili, padre. Comecei a enfiar na boca do indivíduo todo o creme que havia nas duas caixas. Eu enchia a boca dele de chantili e ainda por cima tampava suas narinas. Quando não havia mais nem um tantinho de creme nas caixas, eu ainda tive a frieza de empurrar os morangos inteiros guela abaixo no safado. Tudo isso demorou uns dez minutos padre, até que por fim ele deu o seu último suspiro.

É isso padre, foi assim que tudo aconteceu. O que? O senhor quer saber se eu estou arrependida? Não, padre. Eu não me arrependo do que eu fiz. Posso dizer que eu até senti prazer. Não. O senhor não vai vir com essa de que eu tenho de rezar cem Pai Nossos e duzentas Ave Marias. Eu já disse que não vim aqui pra me confessar. Só queria desabafar. Agora já me sinto bem melhor. Ah, a propósito padre, antes de sair do motel eu fiz uma limpa na carteira do velho. Estou pensando em doar todo o dinheiro pra igreja do Senhor, mas acho que o senhor padre não vai querer, não mesmo? Afinal não é um dinheiro, digamos “limpo”. Ah, o senhor aceita! Sei. É para ajudar nas obras de caridade? Entendo. Então vou deixar lá na secretaria da igreja. Padre, obrigado pela atenção.

Um comentário:

Manu silva disse...

Achei muito bom, Crônica Morangos com Chantili, que recebido (Elano), é muito interessante, ela relata fatos, que acontece no nosso cotidiano.