domingo, 22 de junho de 2008

Amigos e leitores: o blog "Diário de Bordo & A Poética Crônica dos Contos" estará de "férias" no período de 24/06 a 05/07. Durante esses dias, estarei participando das Oficinas do projeto "Revelando os Brasis", que teve, entre os 40 textos selecionados, o conto "Cahorro-Quente Vodu", de minha autoria.

O que é o Revelando os Brasis? Revelando os Brasis tem por objetivo promover a inclusão e a formação audiovisuais por meio do estímulo à produção de vídeos digitais. Dirigido a moradores de municípios brasileiros com até 20 mil habitantes, o projeto contribui para a formação de receptores críticos e para a produção de obras que registrem a memória e a diversidade cultural do País, revelando novos olhares sobre o Brasil.

Como funciona o projeto? A partir de um Concurso de Histórias destinado somente a moradores de municípios com até 20 mil habitantes, os interessados enviam textos contando as histórias (reais ou de ficção) que gostariam de transformar em vídeo. Quarenta histórias são selecionadas, e seus autores participam de oficinas preparatórias de roteiro, direção, produção, fotografia, som, edição etc. Na etapa seguinte, os selecionados colocam em prática o aprendizado recebido, retornando a suas cidades para a realização dos vídeos.

Cachorro-Quente Vodu
(por Elano Ribeiro)

Estou atrás de um dos gols da quadra de futsal. Apenas uma grade e alguns poucos metros me separam da baliza. Posso sentir o cheiro do suor que sai dos poros da pele do goleiro. Quase posso ouvir os batimentos cardíacos do goleiro: acelerados, descompassados, arrítmicos, frenéticos. A rivalidade entre o time da casa e o visitante (dois municípios vizinhos) sempre foi conhecida na região, mas nunca esteve tão acirrada. Os “caras de lá” levaram dois dos melhores jogadores dos “caras de cá” pra essa temporada. Bola no centro, árbitros apostos, jogadores eufóricos, torcida tensa: vai começar o jogo. Vai começar a maior manifestação de amor e ódio do brasileiro (e pela quantidade de mulheres em volta da quadra, das brasileiras também).

Amor: o time vai bem, é líder do campeonato, todos os jogadores são craques (para alguns eles são quase semi-deuses), que normalmente nunca erram (apenas dão azar, às vezes), o treinador é o professor (use ele prancheta ou não, saiba ele falar bem ou não, saiba ele escrever corretamente ou não).

Ódio: o time vai mal, vai ser rebaixado, os jogadores são pernas-de-pau (alguns deles deveriam ir para o inferno), que normalmente nunca acertam um lance sequer (e quando acertam é porque deram sorte), o treinador é um burro e filho de uma mãe que nunca está presente para questionar os diversos “adjetivos” que lhes é atribuída.

Na quadra começa a partida, rola a pelota. O time da casa – considerado inferior depois da perda dos dois atletas para o time adversário – sai na frente: 1 x 0; o time visitante se mostra nervoso: 2 x 0; recuo um pouco da posição em que estava (cotovelos apoiados no muro que circunda a quadra) para dar lugar a uma menininha de seis anos de idade, que a todo momento me faz perguntas: tio, aquele ali de cabelo esquisito é do nosso time?; tio, porque é que tem um moço vestido todo de preto? (tenho vontade de lhe responder que ele está de luto pela própria morte, que irá acontecer caso ele não apite corretamente); tio, o que acontece se ninguém fizer gol?

A todo o instante a menininha de seis anos de idade sai do lugar que eu lhe cedi, diz que tem muita vontade de fazer xixi. Sempre fico na expectativa de que ela não vá voltar, e dessa forma, eu possa ocupar novamente o lugar que por direito é meu. Mas ela sempre volta. Dessa última vez, ainda voltou com um cachorro-quente nas mãos, praticamente sem molho algum, só mesmo uma salsicha dentro de um pão. Enquanto eu começo a me preocupar se a menininha de seis anos de idade não vai vomitar todo aquele sanduíche nos meus pés, o time da casa faz 3 x 0: delírio total da torcida. Acho que vamos golear. Mas na mesma proporção em que o sanduíche (cachorro-quente ou pão com salsicha, já não sei mais precisar o que é aquilo que a menininha de seis anos de idade come) vai acabando, também vai diminuindo o ímpeto do time da casa.

Começo a suspeitar que o potencial do time dos “caras de cá” têm a ver com aquela mistura de farinha, água, sal, ovos e mais a porra da salsicha (que de sólida, vai aos poucos se transformando numa coisa pastosa, de tanto que a menininha de seis anos de idade a comprime dentro daquele pão “suspeito”). Mais uma mordida: 3 x 1; outra mordida: 3 x 2. Sinto-me responsável, preciso deter a fúria-comilona-devoradora-de-cachorros-quentes: “por favor, a garotinha poderia terminar de comer seu sanduíche depois que o jogo acabar?”. “Não posso esperar tio, está muito gostoso e eu estou com muita fome”. O time dos “caras de lá” cometem a sexta falta: tiro livre pra gente. Vamos ampliar o placar e sair do sufoco. Não. O jogador (o melhor que temos, o craque, nossa promessa de gols) perde o gol. A bola vai justo na direção do goleiro. Percebi que no momento do chute aquele projeto de sanduíche levara mais uma mordida. Resta-me pedir ajuda aos céus. Deus parece ouvir minhas súplicas: encerra-se o 1º tempo.

Curiosamente, a menininha de seis anos de idade interrompe a sua degustação juntamente com o apito do arbitro, que finalizou a primeira etapa. Ela simplesmente parou de comer o maldito sanduíche-cachorro-quente-pão com-salsicha. Envolveu o que restava daquela massa já disforme num saco plástico. Certo da influência maligna que aquela coisa vem exercendo sobre o time dos “caras de cá”, pergunto aliviado: “ah, então você resolveu acabar de comer essa coisa em casa?” “Não, tio. Estou guardando a outra metade pra quando o jogo começar de novo. Tio, porque que o jogo parou?”. Achei melhor não responder, afinal deve haver algum parente da menininha de seis anos de idade por perto e, certamente, ele ou ela não vai gostar de ouvir minha resposta. Mas, sinceramente, já começo a achar que o jogo nem devia ter começado. Mas começou. E acaba de recomeçar.

Junto do apito estridente do “homem de preto”, ordenando que a bola volte a rolar sobre o piso de cimento, vem o barulho quase que insuportável do plástico se abrindo. De dentro dele, do saco plástico agora todo aberto, vem o cheiro enjoativo da dupla mais suspeita e perigosa da noite: o pão e a salsicha.
No mesmo instante, a fúria-comilona-devoradora-de-cachorros-quentes volta a abocanhar o que já foi um inocente sanduíche. Numa tentativa de demonstrar que não existe qualquer cumplicidade entre ela e a tal dupla infernal, a menininha de seis anos de idade grita o nome do time da casa, mas as palavras que saem da sua boca vêm acompanhadas de um farelo de cor indescritível, resultado do encontro da farinha, água, sal, ovos e mais a porra da salsicha com a sua saliva. A mal educada grita com a boca cheia, e junto dos farelos que irrompem da sua boca como lavas sendo jorradas de um vulcão no exato instante em que ele entra em erupção, vem mais um gol do time visitante: 3 x 3. “Porra, eles vão virar o jogo se essa criatura, que deveria ser um anjo – mas está longe disso –, não parar de comer essa porra nojenta.” – penso eu em voz quase baixa.

Estou definitivamente certo de que o sanduíche é uma espécie de vodu. A cada mordida que ele leva, os jogadores do time de cá perdem suas forças, e a fúria-comilona-devoradora-de-cachorros-quentes é a mestra involuntária dessa magia. O jogo prossegue num ritmo alucinante: o time visitante ataca sem parar, enquanto que o time dos “caras de cá” só faz se defender. Sinto que a coisa não vai acabar bem. Estou quase arrancando das mãos da menininha de seis anos de idade o que resta daquela mistura explosiva. Não. Se eu fizer isso vou ser linchado aqui mesmo. Um cara do meu tamanho e da minha idade atacando uma criança indefesa – todos vão achar que eu sou um louco faminto tentando roubar aquele resquício de sanduíche. Resolvo ficar na minha, junto com minhas orações, que hão de ser mais fortes que qualquer magia.

Faltam vinte segundos pra acabar a partida. Do jeito que a coisa vai o empate será um ótimo resultado pra gente. Nas mãos da menininha de seis anos de idade ainda resta uma pequena migalha daquilo que já foi alguma coisa. Ela se prepara pra abocanhar o último pedaço. O time dos “caras de lá” ataca velozmente pela esquerda. A menina abre ainda mais sua boca pra receber o último pedaço. O time dos “caras de lá” tem direito a um lateral, bem próximo do gol do time dos “caras de cá”. Faltam quinze segundos. O lateral é cobrado. Treze segundos. O último pedaço começa a adentrar na boca da fúria-comilona-devoradora-de-cachorros-quentes. Um jogador do time dos “caras de lá” passa pelo goleiro do time dos “caras de cá” e lhe dá uma cuspidela na cara. Dez segundos. O goleiro sai do gol com a bola em jogo pra reclamar com a arbitragem da agressão sofrida. Cinco segundos. A menininha de seis anos de idade aplica o golpe mortal naquilo que já foi alguma coisa. Ela morde. A bola é cruzada na área. O goleiro não está lá. A bola bate na perna do pivô do time dos “caras de cá” e entra lentamente pro fundo das redes: 4 x 3. O jogo acaba. O sanduíche acaba. Fomos derrotados. A menininha de seis anos de idade embola o saco plástico que revestia o sanduíche (ou aquilo que já foi alguma coisa) e joga pro alto. A embalagem plástica cai igual a um pára-quedas sobre minha cabeça. A fúria-comilona-devoradora-de-cachorros-quentes some em meio à multidão que, desolada e frustrada, retorna aos seus lares (alguns não menos frustrantes e desoladores). O que eles e mais os jogadores do time dos “caras de cá” (que agora estão todos reunidos sentados no centro da quadra tomando um esporro do treinador) não sabem, mas eu tenho certeza, é que o jogo foi perdido por causa da dupla mais suspeita e infernal da noite: um pão e uma salsicha. Ambos “comandados” (ou seriam, treinados?) por uma menininha de seis anos de idade.

Um comentário:

Anônimo disse...

AH, sim sim. A escrita é verdadeiramente o seu psicólogo!